Disse que não emprestava o livro. Não era pessoal. A questão. É que a última experiência de empréstimo havia sido traumatizante. E ainda era. Porque até aquela data o objeto não voltara para suas mãos. E nenhuma das tentativas foi efetiva o suficiente para mudar a situação. Para transformar em outra coisa, presença, decerto, aquela ausência que se fazia sentir todo dia. Do livro querido. Do exemplar raro. Edição esgotada. Capa dura. E linda. Dia desses até checara o valor de outro na Internet. Abusivo. Queria era aquele mesmo. Tão seu já. Mas tão usurpado por um pedido desinteressado, agora sabia, de empréstimo. Se quem pediu gostasse de ler. Pelo menos. Mas nunca. Nadinha. Nem gibi. Nem fotonovela. Nem clássico. Nem autoajuda. Foi até pensando em uma boa ação que aceitou colocar nas suas mãos aquele exemplar tão querido. Atitude impensada. Inocência. Se não lia, por qual motivo mudaria o rumo da vida para honrar o objeto que tomara por empréstimo. O que a impingiria a honrar a confiança da pessoa crédula que abria mão de seu mais querido livro (não importando que cada um fosse o mais querido)? Disse que não emprestava o livro. Mas isso foi depois. Naquela hora, naqueles tempos, recobra, não via problemas no gesto altruísta. Sempre recebia de volta o exemplar compartilhado. Não colecionava motivos para negativas tão paradoxais. Para que o livro, afinal? Para enfeitar paredes. Prateleiras. Ser contado às dezenas. Centenas. Ser moeda. Ser peso-morto. Estátua em praça privada. À vista de poucos. Sem a sujeirinha do cocô do pombo. Cheirando a novo. Desempoeirado pela diarista atenta. Marcas inexistentes de dedos engordurados. Ausência de amarelos esvanecidos de tempo passado em folha de papel. Disse que não emprestava o livro. Se esforçou em explicar as razões. Em fazê-las serem aceitas. Não queria passar por aquilo de novo. É inaceitável. Vai cobrar. Na cara dura mesmo. Não era presente. Se fosse, não havia problemas. Gosta de distribuir mimos. Mesmo esse exemplar dileto, se tivesse sido solicitado como uma doação. Acha que desapegaria. Sem problemas. Mas era um empréstimo. Chegou até a vê-lo. Parado. Empoleirado como parte da paisagem alheia. Já não era lembrado como algo a ser devolvido. Está criando coragem. Para dizer. Como quem não quer nada. Aliás, quer só uma coisa. Única. O livro. O que fazer com o amor à literatura? Ao apego sentimental? Como sanar a dor. Como preencher a falta. Já pediu. Umas três vezes. Agora não tem mais coragem. Mudou a postura. Disse que não emprestava o livro.
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