A casa foi. E ainda é. A da minha infância. Algumas coisas mudaram. Outras permanecem. Dentro da casa. Umas diminuíram. Outras aumentaram. A casa aumentou porque muitos dos seus antigos moradores já não estão lá. Uns foram morar em outra cidade. Outros foram morar em outra dimensão. Se há uma coisa que ainda mora. É a casa. Em mim.
Podia não haver saudade. Nostalgia. Tenho a sorte de ter a casa em um tempo verbal presente. Mas eu não estou presente. Nela. Ela está lá. Como o terreno que a circunda. Na infância, era enorme. Infinito mesmo. Hoje, enxergo seus limites. A casa fica em lugar afastado do centro da cidade. No alto do Bairro de Bodocongó. Hoje, chamado Universitário.
Mesmo assim, sendo lugar de aglomeração de estudantes, a casa fica como imune. Na sua rua ninguém passa. O futuro quase não chegou. Com exceção do calçamento que ocupou o lugar da terra seca ou enlameada, a depender do clima. Não foram construídos prédios altos por ali. E até os poucos vizinhos, já não estão. Era silêncio que havia. Hoje é medo. A casa ficou ainda mais afastada. E o futuro quase não chegou.
Podia não haver saudade. Nostalgia. Mas basta que eu ponha os pés na casa, para que cada seu pedacinho me conte sobre histórias que eu vivi. Ou sobre as que aconteceram sem a minha participação.
Naquela casa, vi minha mãe plantando as arvores frutíferas – pés de caju, manga, seriguela, acerola, pitanga. Fazer o jardim decorativo. Aguei as plantas no cair da tarde. Acompanhei os passos do meu avó, quando fez do terreno lugar fértil. Roça pequena de milho, mandioca, feijão.
Naquela casa, vi meu pai se levantar cedo, quase madrugada, dar uma volta para ‘botar reparo’ em como tudo amanhecera. E repetir, ao nos acordar, que passarinho, que não devia nada a ninguém, àquelas alturas já estava trabalhando.
Naquela casa, vivi o que é realizar o sonho da casa. Própria. Construída tijolo a tijolo. Comprado na junção de moeda por moeda. Lugar para acomodar, sem sufoco, onze filhos. Dois ou três por quarto. Corredor dos homens. Corredor das mulheres. E um quarto de casal como farol. Encimando. Enxergando. Como forte. Protegendo.
Naquela casa, o que não ficou pronto na época, não ficou até hoje. Houve reparos. E avanços. É certo. A diligência da minha mãe fazia acontecer o que não era viável, se se olhasse direito. Botasse na ponta do lápis. Mas veio Seu Manoel talhar belas camas. Veio dona Lindaci, costurar bonitos lençóis e cortinas. Veio Lurde. Lavar e passar. Cuidar de tudo com seus olhos brutos, embotados de cimento e lágrimas. E toda a doçura escondida. Furar a lata de tinta para torrarmos castanha. Fazer o fogo de assar o milho. Subir no pé de caju. Deixar que subíssemos no de goiaba. Nos dizer sobre o pau sequinho que precisava ser recolhido para dar vida ao fogo das nossas panelas de leite ninho.
Naquela casa, convivi com pererecas. Caranguejeiras. Sapos de tipos esquisitos. Passarinhos desavisados de que ali agora havia casa e esbarravam nas paredes recém-erguidas, caindo quase mortos. Tentávamos salvar suas vidas. Batucando um canto outro, sobre a bacia onde os acomodávamos. Não sabíamos a origem da receita. Nem o fundamento científico. Mas tínhamos fé. Houve mais baixas do que sobreviventes. Tentávamos.
Naquela casa, fizemos as festas de São João. Soltamos fogos e balões. Sentimos a quentura da fogueira. Naquela casa, as festas memoráveis. Naquela casa, meus irmãos e seus amigos tocando violão, bebericando, cantando Belchior. Ednardo. Amelinha. Zé Ramalho. Ensinaram-me, sem saber que o faziam, a gostar de encontros. A reverenciar a música popular brasileira. A repetir seus gestos. De levar até os lábios um copo de cachaça. E mordiscar depois uma rodela de caju com sal. O melhor tira-gosto.
Naquela casa, em que fui menina, permaneci até me tornar mulher. Ficou pequena para mim. Saí de lá com uma mala. Duas caixas de livro. Tomei a benção. Pedi permissão. E segui caminho. Sendo uma das moradoras que já não está. Se há uma coisa que ainda mora. É a casa. Em mim.
Em 05/05/2019 completaram-se 40 anos do dia da mudança para a casa.