É MANHÃ DE SEGUNDA-FEIRA
É manhã de segunda-feira. Além dos sons habituais escuto os de gritos de comando, jatos de água, motores de tratores e de caminhões, sirenes, e, o burburinho de gente atônita, para lá e para cá, com cara de quem quer entender melhor e olhos assustados de incredulidade. Vejo também passos apressados de equipes de televisão e de garis. Trânsito interditado na região. Os sinais não funcionam. Tudo parece caótico. É como costumamos ver na televisão, penso.
Viver tudo da janela é diferente. Digo da janela porque foi de onde vi a chuva que caiu torrencialmente em Brasília, justo no dia de aniversário de 59 anos da cidade, tarde de um domingo, 21, que deu suas caras com sol forte e convidativo.
Depois, o astro se retirou da festa como se não recebera convite. De esguelha, como fugitivo. Deixou em seu lugar uma chuva despudorada. Desceu farta por tempo desatento a ponteiros. Longo demais para quem esperava que passasse. A fim de contabilizar estragos. Ou agradecer pelos males menores. Foi o que eu fiz. Senti alívio pela segurança aparente.
Da janela, onde me detive, numas vezes encantada, noutras, assustada, imaginava que haveria consequências. Era muita água. Já dali eu via as árvores agitadas como um Tarzan batendo no peito. Um Incrível Huck tornando-se grande demais para as roupas que o continham. A natureza parecia em fúria disfarçada. O céu grunhia trovoada. Abria-se em raios e relâmpagos que douravam a escuridão antecipada pelas nuvens carregadas.
Quando restavam chão encharcado e filetes de água buscando refúgio, inofensivos como uma criança que grita “não fui eu”, diante de um flagra de uma traquinagem, fui para a minha casa. Cruzei a cidade. De uma asa a outra. E foi então que me vi dentro mesmo da televisão. Diante dos fatos. Mas em distância, de certa forma segura, deles.
Raízes, galhos, folhagens atravancavam o caminho. O barro vermelho escorria úmido como língua de cachorro arfante. Veículos enviesados – obrigados a parar ou a se deixar largar por força de acidente ou para que seus motoristas se livrassem de perder, junto do veículo, a própria vida – impediam a passagem. Refiz a rota inúmeras vezes na tentativa de chegar incólume em casa. Continuei vendo as cenas de uma cidade devassada. Agradecia por cada trecho vencido. Sem maiores intercorrências.
Já na minha quadra, percebi a escuridão de uma rede que não suportara a enxurrada. Tateei as escadas, iluminadas por fraca luz de segurança. Não havia velas. Por sorte, o celular estava com a bateria carregada. Usei sua lanterna – racionando e racionalizando as razões de fazê-lo. Não sabia por quanto ele seria nossa única ligação segura com o mundo. Adormecemos.
Agora, é manhã de segunda-feira.
Foto: Marcelo Camargo: Agência Brasília.
