Nunca vi ninguém baixando o vidro do carro em sinal de que aceitava sua oferta. Mas o braço era incansável no ato de estender-se. Oferecer duas caixas surradas onde eram vistos dropes de hortelã e jujubas. Ou talvez chicletes.
Eu nunca fiz perguntas pessoais. Mas acostumei-me a encontrá-lo ali. Em frente à catedral. Sentido Asa Norte-Esplanada. Passa alguns períodos ausente mas logo volta. Com seu corpo franzino. Sua blusa social abotoada até goela. E mangas esticadas até os punhos. Seu boné – que parece não ter abas suficientes para protegê-lo do sol. É o que se vê pela escuridão disforme da pele do rosto. Onde chamam a atenção, os dentes que faltam.
Ao aproximar-me, torço para que esteja lá. Gosto do seu sorriso constante. Imagino que talvez não houvesse motivos para mover os lábios em gesto tão característico de quem passa por melhores dias na vida, do que ele aparenta passar. Mas prova que estar contente tem relação maior com o que está dentro do corpo do que pelo que é oferecido a ele pela lida da vida.
Sempre pergunto como vai. Diz que está tudo bem. Rindo. Quase gargalhando. E a face parece ficar menor com a contração das bochechas. Me diz coisas soltas que vou juntando enquanto vejo a luz adiante ficar verde, me liberando para acelerar e partir. Sem muitas despedidas.
Eu soube do atropelamento. Ocorrido ali mesmo. No seu ponto. Por motorista descabido, cuja imprudência fez com que aquele trabalhador das ruas tivesse costelas quebradas. Ombro deslocado. Braço guardado em tipoia por um sem-número de dias. O mesmo número em que não conseguiu estendê-los. Oferecer as caixinhas. A contento. Sempre imagino que tanto faz para ele vender ou não o conteúdo delas. Tal a cara de quem sabe que não fechará negócio.
Dessa vez, respondeu que não estava bem. Tinha tido AVC. Estivera internado. Por dentro estava tudo ruim e parecia que a morte estava próxima. Movia as mãos pelo tronco. Para apontar onde moravam os problemas.
E eu – perguntou. Eu respondi que sim. Estava firme. Ele reiterou que não. Ele ia mal. Logo não estaria mais por aqui. Sorria, enquanto citava novidades tão desanimadoras. Não contava que um dia ele pudesse não voltar. Não soube bem o que dizer. Talvez algo para reanimá-lo. Espantar dali o pó da poeira-morte que se instalara.
Resolvi seguir o princípio que me guia. A vida é agora. E então, a presença dele naquele dia era o mais importante. E a única que podíamos atestar. Sem passado. Sem futuro. Porque a vida é agora.
“Mas você está firme também. Está aí agora”.
Ainda sorrindo. Concordou. Ao seu lado encostou outro veículo. Seguiu para novas janelas. Deixou a nossa conversa inacabada.
O sinal. Vai abrir. Vai abrir.
Acelerei. Ouvindo o eco da sua risada.