Decidiu não se aborrecer com as interrupções da conversa. Por mais que fossem antecedidas por um “desculpe incomodar vocês”. Dito sem olhos nos olhos. Ares de pouca sinceridade. Antes, seria mais uma formalidade a cumprir. Daquelas que avalizam o que se sabe como um comportamento que ferirá regras. Do tipo que não estão nos livros. Nem nas Leis. Mas em acordos tácitos e silenciosos. Do tipo que fariam o mundo funcionar melhor. Caso fossem cumpridas.
Em lugar de se incomodar ou esperar que aquela pudesse ser enxergada como uma conversa sem parentesco com as que podem ser interrompidas, resolveu acolher todas as interrupções. Receber seus protagonistas com olhos de curiosidade. Acenos receptivos. Perguntas eventuais demonstrariam interesse ao tempo em que não seriam tão invasivas. Quase uma cadeira puxada, à maneira de quem abre as portas de casa a um amigo de longas datas.
Em Brasília, seria difícil evitar pedintes e vendedores se esgueirando por mesas de bar – mesmo que fossem dos mais requintados. Mesmo eles invadem ou fazem acordos com as áreas públicas e colocam suas mesas e outros artefatos em calçadas, calçamentos e jardins. Lugares por excelência de pedintes e vendedores. Seria esperar demais não ter a conversa interrompida em tais condições.
Recebeu com indisposição o vendedor de pás de lixo. Não tinha se destinado ainda a fazer de aliados os que não poderia vencer naquela noite. O homem de pele escura, corpo padecendo de fartura de alimentos, chapéu de couro na cabeça, parecia saído da capa da Missa dos Vaqueiros, do Quinteto Violado. O gibão trocara por calça jeans puída e camisa social desgastada. Chinelos de dedo. Vinha de Pernambuco. Era o próprio construtor do artefato que comercializava com orgulho. Estava na cidade há uns dez anos.
Mais não soube. Nem achou de bom tom perguntar. À oferta, respondeu que hoje não (pensou que talvez nunca). Foi então que recebeu como resposta um bilhetinho impresso. Achou que teria um contato para entregas. Mas era um breve relato bibliográfico. Tratava sobre falta de emprego, moradia de aluguel, filhos para criar. Terminava com um pedido de R$10. Cada.
Devolveu o pedaço de papel acrescido por uma nota de R$2. Era o que tinha hoje, disse. Mas tinha um pouco mais. Trocados com os quais não voltaria. A decisão de se deixar interromper cobraria um preço.
Veio depois a Ana França, com sua Pimenta Negra Doces. Dela, viu o rosto com maçãs salientes. O cabelo encimado por turbante colorido e farto de panos. O sorriso que driblava qualquer negativa. Desfiou com detalhes os ingredientes da trufa, cuja receita aprendeu fazendo. Detalhou os poderes indizíveis do chocolate com toques afrodisíacos do gengibre e mesmo da pimenta.
Mostrou fotos da bicicleta enfeitada por ela mesma com os dons da costura herdados da mãe. Morava na Vila Planalto. Veio para a cidade trabalhar em uma clínica estética. Decidiu complementar a renda. Terminou por fazer do antes complemento, o único ganha-pão. Pelo sotaque, era baiana. Pelo despojamento, também.
A Ana Lua se disse cansada. Pediu para sentar. Portava uma grande cesta de vime. Vazia. O que comercializa, imã de geladeira, cabia na palma da mão e era de lá que o distribuía a fim de que os quadrados e retângulos com as pontas um tanto desgastadas, caíssem no gosto do provável comprador. Saiu de lá agradecida pela atenção. Mas não fez negócio.
O moço bonito. Tatuado. Bronzeado. Regalou os olhos. Mas o interesse ficou circunscrito a sua figura. Por que não? Trazia cigarros artesanais, enrolados com tabaco orgânico e outras especiarias, alardeados com firmeza. Trocou com ele algumas palavras. E deixou que partisse em busca de melhor sorte.
As interrupções, transformadas, deixaram a noite como quem se despede com dois beijos e um abraço. Levanta-se da cadeira puxada. À maneira de quem abre as portas de casa a um amigo de longas datas.