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CUIDADO COM SÃO PAULO

Ele não me chamou.


Não respondi quando se referiu a mim como Jéssica. Porque ele não se referiu a mim.


No lugar ocupado por ele durante tantos meses, o vazio.


Não um vazio que apontasse que fora na Rodoviária do Plano Piloto, como costumava fazer. Ou que estava dando uma volta na Esplanada. Ou entrado no prédio para usar o banheiro. Tomar água.


Era um vazio daqueles que deixam o espaço diferente. E denunciam que se trata de um vazio não provisório ou momentâneo. Mas definitivo.


Olhei para o tablado em que deixava um objeto ou outro. Na verdade, o palco. Em que nunca subiu para encenar. Mas para abrigar seu sonho. De produzir um espetáculo sobre o qual nunca conseguimos descobrir muito.


“Eles dizem que se sou da rua, tenho que falar para o povo da rua, Jéssica. Mas eu não sei fazer isso”.


Ontem mesmo assustou-se quando o gari ousou ocupar o estrado de madeira em busca de papeis e outros objetos que pudessem ir para o lixo.


“Ele subiu no palco, Jéssica”, disse meio indignado. Mas logo sorriu. Com a espirituosidade peculiar. “Se a alma dele cheirar a talco como bumbum de bebê, tudo bem”.


Seus tênis não descansavam sob um rasgo de sol. Sua barraca não balançava com o vento. Seu sorriso sem dente da frente – não estava lá. Ele não se esgueirava pelas árvores fumando um cigarro. Não me oferecia um biscoito de coco.


A partida estava consolidada. Ainda ontem me disse que ia embora. Às 17h. Não estava triste. Nem lamentava. “São Paulo, Jéssica. São Paulo”. E balançava as mãos para dar conta, com aquele gesto, da grandiosidade do lugar.


- Cuidado com São Paulo. Ela engole gente.


- São Paulo, Jéssica. O lugar do sonho para quem é da arte.


Eu sabia disso. E concordei. Mas você é tão frágil, Roque. Disse a mim mesma. São Paulo não vai ter uma Esplanada toda sua. Onde possa encantar as pessoas com seus devaneios sobre o espetáculo que talvez nunca execute.


Fomos covardes com você, Roque. Disse a mim mesma.


Desfrutamos de sua companhia. Ouvimos seus conselhos. Curamos nossa solidão conversando com você. Nos divertindo com sua alegria.


Mas e seu cadastro no Ministério da Cultura? E sua carta ao então presidente da República? E seus sonhos, Roque? E seus sonhos? O que sabemos deles? O que fizemos para torná-los realidade?


Fizemos você parte da paisagem. E mantivemos uma relação tão superficial quanto todas as outras que mantemos.


A impressão que tenho é que não cuidamos de você. Nem na chuva. Nem no sol. Nem em época de vento. Não curamos sua fome. Não vestimos o seu corpo. Não analisamos seus papeis. Não promovemos seu nome como diretor do espetáculo tão pronto em sua cabeça.


(Não) vimos você partir.


São Paulo engole gente, Roque.


Foto: Gilberto Soares


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