Adormeci enquanto tentava engatar na leitura.
Acordei na madrugada. Não dormi mais.
Não senti angústia. Mas não encontrei um bom rumo para o fato de estar desperta.
Não voltei à leitura. Não escrevi. Não desfiz as malas. Não joguei o lixo. Não arrumei prateleiras. Não fui para a janela. Não olhei a cor da noite.
Deitei no sofá. Em silêncio. Ouvi os sons dos arredores. Gente abrindo portas. Gente chegando em casa. Gente saindo de carro. Por um momento julguei ouvir gemidos – seria gente transando. Mas a informação não foi confirmada. Confundi as sonoridades.
Quando o dia clareava, ouvi a moto que entrega os jornais. Voltei ao tempo em que amamentava. Via as luzes dos postes se apagarem. Ouvia a moto que entrega os jornais. O ruído me lembrava que o dia chegara. Boas horas haviam se passado sem que eu notasse. Enquanto trocava fraldas. Trocava de peito. Olhava com ternura para um serzinho gerado em minhas entranhas.
O gatilho da memória puxado por um barulho me levou a pensar que os sons das coisas seguem conosco. Despertando sentimentos. Bons. Ruins. Traumas. Alegrias. Uns se desvanecem. Outros ficam mais altos. Com o tempo.
Brinquei de enumerar alguns ligados a minha vida. O rádio do meu pai sintonizado nas primeiras horas da manhã. O cantar dos pássaros anunciando que raiou o dia. O crepitar da fogueira de São João. O choque do vento nas folhas secas dos arredores da minha casa de infância. A mudez de um sorriso que me fazia bem.
Há um som que evoca em mim coisas ruins – algumas que nem cheguei a viver. O de batida de carro. Como ele é amplificado quando se está dentro de um, durante um acidente. Como se faz inesquecível. E audível - mesmo quando não se está na estrada. Como somos capazes de refazê-lo quando apenas intuímos a sua vibração enquanto nos levava alguém amado.
Saio do torpor.
Penso agora no contrário dos ruídos. Tenho gostado do silêncio. Por vezes, evitado a voz das pessoas. Como falam alto. Seus timbres chegam a me incomodar. Tenho escutado menos música – e isso ainda não concluí se é uma vantagem.
Venho exercitando o silêncio. Feito, antes de abrir a boca, perguntas que lemos em manuais de autoajuda. Isso que vou dizer é edificante? É verdadeiro? Faz bem? Fala bem de algo ou alguém? Por vezes, consigo emudecer ante a alguma negativa. Noutras, deixo-me afobar pelas palavras. Jorrando. Borbulhando. Sem conteúdo. Falar me cansa.
Tenho exercitado a escuta. Feito exercícios que lemos em manuais de autoajuda. Sobre conversar. Sobre ouvir. O outro. Não apenas esperar a vez de responder. Pensar no que dizer em seguida. Mas deixar soar a pausa. A resposta muda. Dita pela presença. Pela ausência. De julgamentos. De críticas. De fórmulas. Ser desimportante. Pelo falar. Ser importante. Pelo escutar.
Acordei na madrugada. Não dormi mais.
O sol já está alto. Olho da janela. Escuto com mais nitidez. Os pássaros. Ben Jor toca no rádio. A vida ganha gestos. Vejo o abraço entre o homem e o cachorro. Sinto o cheiro do café que acabei de passar. É hora de protagonizar os meus sentidos. E criar outros.