Hoje é dia da consciência, negra.
Olhe para você.
Seus cabelos. São aqueles por onde a água não entra. O pente não entra. Os dedos não entram. Se quiserem lhes acarinhar, negra. Daí, sua solidão de mulher negra. Você vai ser trocada por uma com quem se possa passear no shopping. Você vai ser trocada por uma a quem se possa apresentar à família. Você vai se sentar e perceber as lágrimas caírem com a agressão sequer alcançada por seu entendimento de menina-negra.
São outras mãos passando ferro quente. São outras mãos te encharcando de formol. Formol, negra. Aquele produto que serve para conservar defuntos. Gente morte, negra. E a voz de quem já passou por isso vai se fazer ouvir. São outras mães-negras. Explicando quase nada. É que você é assim. Negra. Assim. E você nem entende.
Hoje é dia da consciência, negra.
Olhe para a sua pele. Negra. Tão opaca que faz as vezes de lousa. Quadro negro. Será riscada. Arranhada. Pintada. De cinza. De branco. Escreve nela. Se inscreve, negra. Você vai ver que ali nos dedos haverá grande separação. Do outro lado, clareia. Avermelha-se. É ali onde jorra o sangue. Embaixo dos seus pés, também. E sua buceta, como é? Escura demais. Eles respondem. Daí, sua solidão de mulher negra. Você vai ser trocada por uma rosada, daquelas que se gritam na Rússia. Daquelas que vão para a cirurgia. Ninfoplastia. Para aumentar a sensualidade. Melhorar a sexualidade. É o que dizem.
Hoje é dia da consciência, negra.
Veja aí, os dentes como estão. Não é coisa do passado. Cavalo dado, não se olha os dentes. Mas os seus. Você não é cavalo. Negra. Serão analisados. Sorria. Você está sendo filmada. E seguida. Na loja. No supermercado. Você vai sentir aquela presença quase invisível. Mas você está sendo vista. E vão dizer. Nada, não. Você está enganada. É que você é assim. Negra. Sensível. Cria coisas. Eles têm amigos. Assim.
E você é assim. Negra. Abra as pernas. Tire a roupa. Vamos ao banheiro. Chamem os seguranças. Desculpe por quem se sentiu atingido. Não foi a intenção. Aqui primamos por toda forma de combate, negra. Combate. Bate. Bate, que a porta se abrirá. Mas você é cheia de lassidão, negra. Tanta carne. Boa mesmo para ir para a cama, negra. Cuidado quando estiver lá. O mundo já tem gente demais. E se vier um rebento aí. Coisa abençoada. Criança. Coisa mais bonita do mundo. Não a deixe solta, negra. Nada de rolezinho. Nada da concessionária de carro importado. Nada de lanchonete americana. Não pode. Não pode pedinte. Aqui.
Hoje é dia da consciência, negra. É para discutir a inserção do negro na sociedade brasileira. A sociedade. Negra. A inserção. O que você faz aqui? Seu lugar era lá. Noutro. Na casa grande. Trabalho. Dá o peito, negra. Ao patrão. Ao filho dele. Não com você. Esse, você joga fora. No lixo. Ou mata. O mundo já tem gente demais.
Hoje é dia da consciência, negra.
Brilha.
Foto: Yalodê Moda Étnica