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TRÊS POR DEZ

O homem simples à frente de uma carroça. Parecia guardião de castelo. Seu tesouro, uma montanha de feijão. Verde. Tão alta. E graciosa. Fazia ondas construídas com as mãos. Aqui e ali uma pimenta de cheiro cortava uma cor para pintá-la, rajá-la com outra. Vermelha. Aqui e ali um molho de coentro e cebolinha. Exalando cheiros de casa de mãe. De almoço de sábado. Da cidade largada em busca de outros chãos. Trazendo o pretérito, ao tempo em que brindava o agora com iguaria tão inusitada. Vendida em pleno centro da grande cidade. São Paulo.

Parei para olhar. Aquilo me fazia tanta festa aos olhos. Parei para cheirar. Exalar profundo o que vinha. Era tanto por tão pouco. Só o homem e seu castelo. De feijão. – Bora levar? Ele pergunta, me tirando do transe das reminiscências. – Vou não, moço. Quero só olhar. Não moro aqui. Nem tenho onde fazer feijão. Nessa hora não falei a toda verdade. Estava não em hotel ou qualquer outro tipo de hospedagem impessoal. Mas no apartamento do meu irmão. Com cozinha – e todos os seus apetrechos.

Insistiu. – Vou te fazer três por dez. E já pegou uma sacola, onde foi acondicionando, um a um, o conteúdo das três cumbucas de plástico que usava como medida. – E isso aqui, dizia chacoalhando pimentas e molhos de coentro e cebolinha, você nem vai pagar. Vai de brinde. Melhor vender mais barato do que perder a mercadoria para a polícia.

Foi aí que me convenceu. Perder aquela riqueza toda para o banco inócuo e frio das garras policiais? Era coisa de fazer doer. Como remédio, catei na bolsa uma nota de dez. Recebi de volta um saco pesado. A tiracolo, logo me causou incômodo. Ainda havia muita andança pela frente.

Tratei de anunciar, por mensagem no celular, a meu irmão e a uma amiga conterrânea que, sim, havia feijão verde. E dali mesmo combinamos o almoço redentor que nos ligaria, mais que fisicamente, por nossa memória afetiva.

Dia do encontro chegou. Feijão no fogo. Ansiedade no corpo. Ia ser bom. Mas algo pareceu errado. A água do feijão ia esverdeando-se ao tempo em que ele perdia sua cor. E até sua aparência e propriedades pareciam se modificar. Comecei a duvidar da veracidade da espécie. É feijão verde. Dizia meu irmão.

Intuição me alertava do engano. Deixei que o fogo atuasse. O produto não ia nem vinha. Duro ainda. A água mais verde. Caiu a ficha. Desliguei o fogo. Depois de muito tempo de insistência. O que ficou na panela não se explicava. Chegamos a pensar que era soja.

Tentei desmarcar o compromisso. A sua força motriz se desfizera. O feijão não existia mais. Era preciso assentir. Eu havia sido enganada. Refiz na cabeça as características do feijão verde: precisa de pouco tempo para ficar pronto. É meio rechonchudo. Seu caldo, ralinho, é mais para cinza do que para verde. Ele solta, no cozimento, a película que o envolve. O cheiro é inconfundível. Repassadas as informações, não acreditei que me deixei levar assim.

Algo me diz que a memória afetiva é a que nunca se esvai. É a que nos encurrala. Ao misturar passado e presente. Verdade e engano. Expectativa e realidade. É a que nos labirinta. Ao nos fazer caminhar por entre paredes estreitas. Caminho sem rota. Sem começo. Sem final. No meio, busca. Ou imposição. De trazer de volta. De reviver. Algo que nem se materializa senão que nos toma na forma de um amolecimento de alma. Uma sensação boa. Que nos agarra. E não queremos soltar. A culpa era dela.


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