É fácil a gente delimitar contornos em Brasília. Digo, ficar tão desenhado, delineado por giz no chão, como um corpo morto em cena de crime, que nenhum apagador será capaz de modificar o que se vê do que nós vemos e por consequência nos tornamos.
Entrar para não mais sair do quadradinho. Desenxergar tudo o que não for céu, sol, secura no nariz, barro vermelho, sangue nos lábios, prédios brancos, vidros espelhados de matar passarinho. Mulher deixando pedaço de salto em calçadas alquebradas. É fácil, em Brasília.
É fácil a gente esquecer que o mundo existe, em Brasília. Aqui se pode ficar restrito a eles, dablius, tesouras, alicates e eixos, num piscar de olhos. Logo se perde a noção de ruas, avenidas, centros, multidões, gritos de pregoeiros, sandálias baratas e desgastadas, mancha d’água nas axilas. Pele queimada de andanças desavisadas. A mão estendida por uma moeda. Ou por cachaça, que não se vai mentir.
É fácil acreditar que a vida é subir e descer escadas. Torcer por elevadores vazios e que não quebrem no meio do caminho. Do andar. Do térreo ao quinto. Apenas. Viagem curta. Fácil fazê-la, em Brasília. Paisagens de perfumes franceses variados e unidos em um único tom forte e apertado na segunda-feira da ressaca. Em que tudo o que se desejaria era uma Brasília livre de cheiros. Parada como a roda-gigante do Nicolândia, quando fica suspensa lá no alto deixando que nossos olhos entendam as asas de Brasília. Me dei conta que isso de entender asas é para quando ficamos parados. Dedos enfiados na grade cinza da Torre de TV.
De todo jeito, asas que não farfalham, nem sobem, nem descem, nem voam, não são comigo. E nem deviam ser assunto de cidade. É assunto de bicho livre. Que pega as asas não para dizer que existem. Mas para permitir que cumpram seu objetivo óbvio – o de voar. Mas é fácil não voar em Brasília. Ser estátua, apenas. Como JK e Dona Sarah. Como acenar do alto para uma cidade em que olhar para cima é coisa fácil de se deixar para depois.
É fácil ficar tudo bem em Brasília. Você vai ao setor que tem profusão do que você precisa que tenha nele. Não se perde. Não titubeia. Você vai nas grandes feiras. E lojas que têmdetudo. Não entra em emaranhados de becos. Não dá de cara com um comércio centenário com um senhorzinho mais centenário ainda esperando por um cliente que talvez nunca mais apareça. Não reconhece mistérios. Nem se depara com a história. É fácil ser folha em branco em Brasília.
É fácil não gastar afeto em Brasília. Não amar. Só encontro fortuito. Sem nome, sem telefone. No coração do Brasil. É fácil não encontrar ninguém. Só marcar para um futuro que não vai chegar. Um café que vai esfriar nalguma mesa sem que tenha sido tocada por ninguém, a xícara em que repousava.
É fácil não ter que explicar-se em Brasília. Só entrar e sair. Subir e descer. Acordar e dormir. Comer e beber. Cheirar e fumar. Para esquecer-se de Brasília. É fácil achar que é bela. É fácil encantar-se por ela. E querer sair nunca mais de seus contornos. Nos quais, delimitados, achamos que a vida é pouca. E suficiente.
Foto: Gilberto Soares