O palhaço estava lá. De certa forma, vivo. Sobrevivera à rejeição imposta desde o adentrar aquela casa.
Ninguém foi com sua cara. O pai não se preocupou em achar argumentos para embasar a antipatia. Com o poder simbólico do ‘dono da casa’, avisou logo que não gostava daquela criatura. Para a mãe, restava cumprir a ordem e tirar o desavisado das vistas de seu homem.
O dono oficial não se oporia. Nunca tinha visto presente de aniversário mais descabido. Não combinava com ele, nem com sua idade. Um rapazinho já. Filho do meio. Na trinca mineira de meninos cheios de regras a cumprir. Era preciso manter-se na ordem da tradicional família.
Coração de mãe não reparte. Soma. Com o dela apertado e cheio de pena decidiu, quase em segredo, dar destino mais glorioso ao palhaço, a essas alturas alçado a filho do coração. Acolhido.
Foi como esconder a prova de um crime. Enterrar um corpo em cova rasa. Deixar rastros. Executar um plano com estratégia falha. Para mediar a situação arranjou um lugar para o palhaço. Na casa mesmo. No quarto do caçula, herdeiro de tudo o que não cabia nos outros. Dos sapatos rotos. Das roupas puídas. E, de agora em diante, do palhaço rejeitado.
Ele sequer foi consultado como, ademais, nunca era. No cair de noite qualquer, seus olhos apertados de sono, arregalados por ganchos invisíveis. Magia descortinada de supetão. Na forma de um palhaço. Com roupa azul e branca – de cetim. Rosto de louça. Maquiagem caprichada. A cabeça pendia para baixo. O que lhe dava um certo ar de melancolia. A ironia sempre evocada. Dualidade da própria vida. O palhaço triste.
Os braços largados rentes ao corpo frágil se estendiam para um abraço imaginário. Um pedido de socorro. Queria ser libertado, tal qual pássaro na gaiola, daquele único prego em que fora atado com pressa e desleixo. O menino. Fim de rama. Tão novinho. Não compreendia a súplica.
Foi dali mesmo, roupa enfiada no aço, que ele se transformou no portal. No sem-lugar em que o caçula virava o primeiro. O único. O que quisesse ser. E o que viria a ser.
O palhaço – encará-lo – passou a ser o caminho percorrido todas as noites. Antes que os olhos se quedassem. Entregues ao cansaço. Dando trégua às graves questões infantis.
Aquele ser deu movimento ao que corria dentro – no seu mundo de fantasia. As cores. As tintas. Entraram no corpo miúdo. Coloriram o destino.
Nunca mais deixaria de ser fisgado por rostos de louça. Seus traços seriam a moldura do seu caminhar. O menino. Homem já. Era no agora – artista.