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CADA UM DÁ O QUE TEM

A coisa voava.

Esbarrou no meu rosto antes que eu pudesse perceber a rota de colisão. Ante o sinistro também não pude saber de pronto o que me atropelara.

O que fosse, agarrou-se em minha pele, entre a pálpebra e o interior do olho. A queimação já era generalizada e eu não sabia precisar a localização do dano.

Com as mãos ocupadas, passei alguns longos segundos no meio do nada tentando saber o que me acontecera e que atitude deveria tomar primeiro.

Agarrar o que eu não sabia o quê e atirá-lo ao longe. Balançar a cabeça para me livrar das garras até ali invisíveis. Jogar o que eu tinha no chão para liberar as mãos e, pelo tato, buscar os primeiros socorros.

Olhos fechados pude ver de relance o que me atingira embora não saiba seu nome.

Era marimbondo? Abelha?

Carapanã – disse um colega.

Imaginei a aparência que eu viria a ter nas próximas horas e dias.

Criada no Quilombo dos Barbosa sei bem o que é ser escolhida por marimbondo de fogo, atraiçoada em meio a um pueril balançar na rede do terraço. Naqueles tempos a prescrição era álcool, vinagre, alho.

A posologia não evitava as dores e o inchaço. Dependendo do lugar da punhalada tínhamos que nos assumir desfigurados.

Era com a imagem de criança, olho miúdo e apertado, que eu me via décadas depois.

Lembrei-me da indicação de Peri, índio Kamaiurá que conhecemos em viagem ao Xingu, para a picada de formiga da flor do pequi. Açúcar.

Se funcionou lá, deve funcionar aqui, para o veneno do carapanã ou o que quer que fosse e me atingira.

Tão logo recobrei a sobriedade fui meio cambaleante, olhos semicerrados, até o quiosque próximo.

- Você tem açúcar?

- Você quer ficar doce?

Não deixava de ser.

Nem chegou a apontar a localização e avistei o pote transparente que viria a ser minha salvação.

Derramei um pouco do granulado na ponta dos dedos e massageei o produto ao redor dos olhos esperando por um pequeno milagre que se configurasse em menos dor e desfiguração zero.

Como fosse conexão com o Dia das Bruxas ou do Saci, saí com um arco caramelado em torno do olho direito.

Tinha esperança de que fosse imperceptível ao tempo em que imaginava atrair todos os olhares para aquela parte do rosto.

A dor cedeu rápido e o inchaço finalmente não veio. A olheira se acentuou. Mas nada que não passasse por ela mesma.

Eu teria mil motivos que a explicariam. Logo, não precisaria explicá-la para ninguém.

Fosse por carapanã ou por olheiras eu sabia por que trazia aquele rosto. Logo, não precisaria explicá-lo para ninguém.

Foi um encontro intrigante.

Fulminante.

A coisa voava.

Eu apenas pisava o chão de terra para procurar comida.

Talvez o meu opositor também.

Esbarrou e se vingou de mim.

Ou me abraçou.

Ou me acolheu.

Ou me saudou.

Do jeito que podia.

Cada um dá o que tem.


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