VINIL É MAIS
De onde estou, escuto.
Ruídos.
Estalidos.
Chiados.
Discretos.
E, maior que eles, música.
Das boas.
Trabalho datado de 1970.
É Cartola. O mestre que dia desses, no 11 de outubro, teria feito 109 anos.
Mandei consertar o toca-discos. Quase perco a conta de quantas vezes já foi fazer moradia em estabelecimentos comerciais no intuito de curar suas feridas.
Desde que encontrei a peça – o um de um três em um – que precisa ser acoplado a uma caixa de som para se fazer ouvir, minha vida se encheu de esperanças musicais.
Revirei o baú dos bolachões. Aos poucos foi tomando ainda mais forma. Frequentei os sebos. As feiras. A coleção de amigos.
No meio do aumento do acervo, a vitrola rebelde dá mostras de que já trabalhou demais.
Tive alguns insucessos na escolha dos profissionais da saúde dos aparelhos letrônicos aos quais entregaria seu restabelecimento.
Dessa vez, alvo na seta. Enxerguei, de repente, uma pequena loja perto de casa que por anos nunca tinha me saltado aos olhos. Era o sinal. De que ali poderia ser o lugar certo.
Não titubeei. Nem me arrependi. Fui atendida por ninguém menos do que um clone do Paulinho da Viola. Fidalgo. Voz mansa. Sorriso largo. Pele preta. Contou-me, muito sentido, que a peça havia sido maltratada das últimas vezes. Não seria possível fazer muito mais.
Em tom peremptório me deu o diagnóstico final: ela estava funcionando. Mas o braço deixara de trabalhar automaticamente. Havia sequelas definitivas.
“Mas é só isso”. Dizia para me acalmar com seu timbre exalando pausas de mil compassos.
Deu um desconto ainda maior do que o já anunciado. Fez o teste com um disco de forró, passou uma flanela por cima da tampa onde fez um arranjo para que não despencasse a cada uso, estancou o movimento do braço com um pedaço de durex – para que os solavancos da pequena viagem de volta não causassem mais avarias – e me devolveu as esperanças com um olhar condescendente.
Já em casa. Alegria. Contemplação.
Abri o baú – revirado do último uso. Meses atrás. Capas vazias. Sacos amassados. Desencontros.
Ainda sob efeito da emoção e sem escolher critérios fiz girar tudo o que foi aparecendo primeiro.
Vieram Bethânia, Belchior, Fagner, Elis, Chico, Ataulfo Alves, Titãs, Nara Leão e finalmente o Cartola que me embalou enquanto escrevia essas palavras.
Eu ouvia vinis desde muito criança. As primeiras lembranças são dos discos de Marinês na vitrola cinza de minha avó Dona Ana.
Depois vêm João do Vale e Altemar Dutra. Aos sábados dançava com os pés em cima dos pés do papai ouvindo os dois.
Aí, vieram tantos e todos os que a grande prole de Maria e Manoel provia naquela casa.
Depois, os que eu mesma escolhi.
Gosto muito de música. Ouvi-la em cds ou nas plataformas digitais cumprem o recado.
Nos colocam diante do som desejado.
Mas ouvir vinil é muito mais.
Atiça todas as emoções e ainda outras que vão surgindo desavisadas.
É viagem sobre a qual só se conhece o ponto de partida.
