Costumo acordar bem cedo. Como hoje. É quando me sinto conectada a você. Aos seus horários. Sua vontade de agarrar o dia – pelos chifres – e domar todos os bichos que apresentassem sua brabeza num desfiar de horas nem sempre tranquilas.
Ouço seu silêncio. Acompanho seu olhar. Que se perdia em vontades. Em sonhos. Na sempre disponível coragem para recomeçar. Para fazer. Tentar outra vez.
Converso com você – ouvidos serenos. Podia lhe contar segredos. Fofocas. Desejos. Podia compartir todos os quereres e desapontamentos. Você devolvia um sorriso. A disponibilidade de segurar minhas mãos e fazer (sua) parte – qualquer que fosse – para estar junto.
Trazia como solução o impossível. Sempre foi seu horizonte. Os moinhos de vento com os quais lutou. Nos quais nunca acreditou. Sobre seu cavalo, acompanhado por escudeiros (nem sempre fieis), desbravou caminhos. Fez sua caminhada.
Estrada ladrilhada por utopias. Garra. Alegria. Amor. Perdão. Palavras mansas. Fé.
Passou por tantas derrotas. Vislumbrou tantas vitórias. Tal um Dom Quixote agreste pintou todas elas com outras cores. Aquarela vívida ou esvaecida abrindo portais para o novo. Para a possibilidade ideal.
A inocência. A crença. A confiança. Tantas vezes condenadas. Para você fazia sentido. Para nós, viria a fazer. Foi quando entendemos quase tudo. Você ficou claro e translúcido. Mas não estava entre nós.
Naquela madrugada, hora das notícias ruins, a voz que contava da sua partida ecoou múltipla.
Todos foram encontrados por aquela notícia.
Todos ficamos incrédulos. Todos gritamos. Todos desabamos. Todos morremos junto com você. Despedaçados por aquele ônibus. Como você. Abandonados naquela estrada escura. Insidiosa. Ultrapassados por aqueles motoqueiros que passaram por sua história para escrever nela a última página. Fim de linha. The end. Fim.
Como visagem, sumiram sem deixar rastros de si.
Deixaram um corpo. O seu.
E já não havia seu sorriso. Sua vivacidade. Sua intrepidez.
Sua viagem acabava ali.
E nos doía mais saber que ela poderia ser tão longa. Banhada por tantas novas paisagens. Bons ventos que sopravam. A companhia de sua filha a quem dedicou tanto amor. A quem amou com tanta compreensão.
Todos tomados por um abismo.
Todos saindo de algum lugar para nos juntar a um ponto. Para em abraço e dor uníssonos entender. Esquecer. Prosseguir.
Aquele dia, aquelas noites, voltam como lembrança de sonho inexato.
Vagando no terraço do Quilombo, seu lugar de estar/festejar/divagar, sofríamos.
Era o ruminar de dores. Questionamentos. Arrependimentos.
Era o pedido – vão – de que tudo, por um segundo, fosse diferente.
Mais pra direita, por favor. Menos velocidade. Não use o celular. Não viaje de noite. Não vá para essa cidade. Coma mais um pouquinho. Fique mais. Fique mais. Fique mais.
Sua mãe chora. Devassada. Diluída. Invisível.
Seu pai cala. Engole o desengano que gota a gota o levaria pouco tempo depois para junto de você.
Nós recebemos as visitas.
Os abraços.
Nós acolhemos o desabitado.
E o embalamos em nosso abrigo.