FORÇA D'ÁGUA
A água atravessou meu caminho hoje.
Sua ausência me fez valorizá-la.
Não estivéssemos na seca de Brasília, talvez eu não tivesse tanta admiração e reverência aos momentos em que abundou – mesmo que de forma restrita.
Primeiro, foi Ana Terra. Aguava os canteiros da escola.
A missão não era simples.
Ela era supervisionada e instruída.
Mais água aqui.
Não esqueça de regar aquelas lá.
O cheiro exalado do encontro entre a terra seca e o líquido transparente foi um presente.
Levou-me à Campina Grande. E ao encontro da minha mãe.
Avistei-a plantando tudo o que verdejou na nossa casa.
Eu e minha irmã nas barras de sua saia.
Ela, em flor da juventude (que não enxergávamos porque era nossa mãe e as mães são sempre senhoras).
Só agora nossa mãe é uma senhora que, pela força do tempo, não pode cuidar daquela terra nem regar flores e frutos. Muitos daqueles pés também não resistiram aos anos. Tantos outros são os que dão cores e vida àquele pedaço de chão que deixamos há muito. Ele permanece dentro. Não nos deixou.
Quando cair chuva na cidade o cheiro vai se generalizar.
E será momento de devoção às águas.
Pois aos pássaros pareceu que era isso que sentiam.
Devoção.
E como souberam desfrutar daquela lagoa.
Era rasa.
Feita de cimento e pedaços de azulejos.
Uma cuba de mosaico fincada no chão.
Sua foz um balde derramado pelas mãos de um funcionário.
Logo brilhou inundada pelo sol da manhã.
Tremulando, atraiu o primeiro frequentador.
Não um pássaro. Ainda não.
Um marimbondo.
Banhou-se como os índios do Xingu em suas águas sagradas.
Nadou e sacudiu-se como criança em dia de piscina.
Saiu reluzente.
Asas pretas esverdeadas. Renovadas.
Veio outro.
Até que o primeiro passarinho.
Brincante.
Feliz.
Como numa fonte do desejo, oferecia o espetáculo da sua satisfação e deixava um canto como prova de gratidão.
Sua moeda.
Veio outro.
Bicava a água.
Jogava-se nela como moleque que nasce na beira de rio. Mergulho de entrega absoluta. Comunhão com o tempo. Com a natureza.
Depois, era tirar o excesso.
Chacoalhar-se como gente. Ou como bicho.
Fazer respingar em quem estava por perto uma gota daquela água.
Seria daquele jeito o dia inteiro. Imaginei.
Fila imaginária.
Nado por revezamento.
Nos arredores, aridez.
Ali, oásis.
Público. Coletivo.
Mas nem todos suspeitariam de sua existência.
Benevolência quase imperceptível.
Aos humanos.
Festa do sol.
Vida é fazer todo sonho brilhar.
Ser feliz.
Com tão pouco.
Com tanto.
O suficiente.
O imprescindível.
Água.
Em tempos de aridez.
De seca.
Tempos de secura para além dos ciclos. Para dentro de si.
O pingo voou até meu braço.
Agradeci.
Em silêncio.
Eu já transbordava.
Comportas abertas.
Represa estourada.
Pela pouca água.
Capaz de inundar as vidas.
Minha.
Dos pássaros. Marimbondos. E a quem mais fosse dado desfrutar.
Com o corpo inteiro.
Com o olhar.
Mergulho imaginário.
Naquele mar.