Brincávamos com as roupas e sapatos de nossa mãe.
Ela conservava peças mais antigas que nos serviam muito bem arrastando no chão e sobrando nos ombros e decotes.
Havia os turbantes. E os saltos.
A coisa virava séria quando se tratava de maquiagem.
A própria matriarca achava imprescindível que usássemos pó e um pouco de blush.
Para ela, estávamos sempre ‘com cara de alma’. ‘Verdes’.
Sem muita delicadeza espalhava os produtos por nossos rostos. Dava pinceladas rosas para corar bochechas, queixo e testa.
Crescemos.
Seguiu reclamando nos dias em que nos via de cara limpa.
E até hoje uma das únicas admoestações que têm a fazer a filhas adultas é a ausência de batom nos lábios.
E que por favor não saiamos assim para trabalhar.
Equivale a falta de decoro.
Pois que mamãe não me veja.
E não verá.
Moramos em cidades diferentes.
Praticamente abandonei os artifícios de embelezamento.
E foi assim, pálida, que saí para trabalhar. No dia em que conheci Manuela.
Na semana em que o fato ocorreu coincidiu de eu ter sido surpreendida por alguns textos na Internet. Com benevolência, mulheres escreveram tratados para incentivar seus pares a ser quem são.
Era importante ter amor próprio. Gordas. Magras. Peludas. Depiladas. Com estrias. Pele lisa. Peitos caídos. Ou em pé. Que não fizessem plástica. Não pusessem silicone. Não entupissem as rugas com botox. Tudo na perspectiva do olhar do outro. E dentro desse espectro, do olhar masculino, claro.
Eu vivo muito distante desse universo. Da moda. Da vaidade. Do consumo. Das intervenções estéticas. E os textos mais pareceram E.Ts do que algo que encontrava ressonância nas minhas questões.
Por algum motivo, no entanto, os argumentos voltaram a minha mente. Como vaga-lume. Pisca-pisca. Intermitentes reflexões.
Eu gosto de fazer a sobrancelha. De estar depilada. Pintar as unhas. São coisas minhas. Feitas para mim. Pelo meu bem-estar e pelo nível de crença que eu coloco nelas.
Assim, como dizia, saí de cara lavada. Como venho fazendo.
Gostava da escolha.
Estava bonita.
Cabelos mais desgrenhados que o usual.
Cara de pressa. E de liberdade.
Tudo foi por água abaixo. Quando conheci Manuela.
Exibia maquiagem pesada.
Embora de cores não muito fortes.
Era possível ver as camadas de base, pó e coisas que nem sei o nome.
Cílios postiços.
O cabelo loiro devia ser enorme.
Estava arrumado em coque sofisticado. Clássico.
Podia ter saído das páginas de um conto de fadas.
E acho que saiu.
Trazia na cabeça uma coroa.
Era uma princesa.
Para o lugar e horário, seu visual intrigava.
Entre as perguntas que queria fazer e não tinha coragem (que espécie de jornalista era eu - entrei em crise profissional), escapuliram duas.
- Você anda assim ou há algo especial hoje? Vai fazer ensaio fotográfico?
- Vou desfilar em evento de noivas. O mercado é forte em Brasília.
Satisfeita pelo mistério desfeito, hora de ir embora.
Fui ao banheiro.
O espelho me olhou.
Estava mais assanhada e desmilinguida do que estivera em toda a vida.
Perdeu o sentido tanta liberdade (não usar maquiagem e não pentear os cabelos).
No dia em que conheci Manuela.