ALGUMA COISA ESTÁ FORA DA ORDEM
O cenário é desolador.
Mas me faz lembrar que mundo afora existem e existiram piores.
O cenário é desolador e me faz lembrar das pessoas que têm convivido e/ou sido vítimas de grandes tragédias – onde sobram escombros, faltam escrúpulos, muitas vezes, por parte de quem as orquestra, como nos casos de terrorismo.
Mas há muitos outros.
E tudo, enfim, vira resíduo – dos objetos às pessoas.
O que se faz quando alguma coisa está fora da ordem?
Quando os vidros se transformam em cacos, o teto desaba, as cadeiras e sofás são queimados e só lhes sobram as carcaças de ferro e nada de estofados, quando os livros perdem suas estantes?
Quando computadores, impressoras, móveis e outros equipamentos estão no chão, avariados e sem serventia?
São dois contêineres lotados de toda sorte de restos – que há poucos dias compunham objetos e ambientes de trabalho.
Hoje arregimentam uma pequena multidão em torno de seus reparos e uma pequena fortuna em torno de sua recomposição.
Placas de sinalização, lixeiras e outros pequenos objetos são vistos a metros de distância apontando a força e a fúria com que foram arremessados.
Olhando para o alto as janelas atingidas por pedras ficam no estilo balança, mas não cai.
As perfurações terminam formando desenhos bonitos como se fossem instalações artísticas reluzindo sob o sol de outono.
Para proteger o que resta novos revestimentos são improvisados.
O vento e a luz entram por onde havia paredes.
Tudo muda porque tudo mudou.
Hoje são dois dias depois daquele 24.
Em que muita gente foi às ruas, veio para cá, a Esplanada dos Ministérios.
Lá, nas ruas, como nos prédios atingidos por quem estava nas ruas, muita coisa ficou fora da ordem.
Mãos e dedos decepados perderam sua missão.
Corpos feridos e sangrando perderam sua integridade.
Olhos lacrimejando perderam sua capacidade de enxergar.
Pulmões bombardeados sentiram dificuldade em respirar.
Políticos perderam seu discernimento e a clareza sobre suas missões.
Policiais perderam a decência e a capacidade de cumprir com o objetivo de proteger.
O povo, a população, os cidadãos, alijados do seu direito de protestar.
A guerra, tão própria de outros países e das obras de ficção, estava bem perto agora.
Tudo sob as críticas, de alguns, de que vandalismo não pode. E nem depredação. E nem fogo. E nem bomba. E nem tiro. E nem cavalaria. E nem ataques aéreos. E nem mortos ou feridos.
Sob as críticas de que havia infiltrados, de que havia os desordeiros e mesmo que não houvesse lados, dessa vez, pois havia um só grito ou dois ou três ou mil – mas comuns a todos os presentes – a coisa toda se deu do lado sul. E o norte pagou o pato. Levou a culpa. Quebrou o pacto.
O lavador de carros, Johnny, me pede licença para dar sua opinião. A polícia diz para não reagir em caso de assalto. O que houve é que as pessoas reagiram por estarem sendo assaltadas por quem devia falar por elas e lhes resguardar direitos frente a um país supostamente democrático.
As pessoas reagiram e os bandidos teriam cumprido o rito, como é previsto que façam em casa de reação. Atiraram, atingiram, contra-argumentaram com violência. Sem pudores.
É possível que tenha sido isso.
O caso é que o jogo é complexo e sujo. Nós vimos, com uma nitidez inédita até aqui, como somos cartas fora do baralho. Manipulados como peças de xadrez em um tabuleiro feito para poucos, em que as regras mudam a todo instante para favorecer esses poucos.
Diante de cifras e golpes tão grandes vi minhas lutas e a de tantos parecerem tão ínfimas.
Mas não são.
As nossas têm de ser justas.
As deles têm de ser barradas.