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O SILÊNCIO SAIU DE CENA

O seu desaparecimento causou burburinho por um tempo. Os motivos, as andanças, os calotes, tudo isso deu argumentos para a falação popular e para a criação de teorias que explicassem a razão do gênio da MPB ter perdido as estribeiras e ter saído do palco dessa forma, com holofotes ainda acesos, mas meio que de costas para o público.

Depois veio o silêncio. Porque o passar do tempo sempre traz o silêncio. Sempre apazigua as dores. Sempre transmuta a saudade. Sempre se empurra – e o que era jovem e novo, hoje fica antigo.

O infortúnio do astro foi imputado a uma mulher, a sua nova, que seria amante, que virou oficial, depois que ele deixou a oficial de tantos anos pela novata amante que virou oficial.

O empresário queria shows. Os amigos queriam presença. Os filhos queriam pai. As ex-companheiras queriam pensão para os filhos que queriam o pai. Os credores queriam o dinheiro que parecia faltar, mas que voltaria rápido se ele fizesse o que o empresário queria – os shows.

Não fez nada, o homem. Seguiu não se sabe por onde, sendo elogiado por tanto desprendimento da vida material. Sendo defenestrado pelo mesmo motivo.

Até que veio a notícia da sua morte. Então, o silêncio saiu de cena. Porque o tempo sempre leva o silêncio. Sempre remexe as dores. Sempre carrega a saudade. Sempre empurra para perto o jovem e o novo. E o antigo ganha nova roupagem e se faz tinindo na memória e no amor de quem tanto sentia isso pelo tal ‘bardo’ cearense, nascido Antônio Carlos.

Não sei se andava se considerando um sujeito de sorte. Sangrou demais. Chorou pra cachorro. Ano passado não morreu. Mas esse ano, sim. Lá se foi Belchior.

E então, talvez todos que mantiveram o silêncio tenham se arrependido de tê-lo feito. Podiam ter falado tudo aquilo, tudo isso, antes que ele morresse. A própria moça que reclamou ser ele um pai ausente poderia ter empunhado a bandeira quando ele ainda pudesse, por força da militância, dar um abraço a mais, ter escrito uma música, tomado um sorvete, dividido o quinhão com sua prole.

Todos que abordaram a força de sua poética, a precisão e ironia de sua pena, o seu destaque em meio ao Pessoal do Ceará, o fato de suas músicas não morrerem, todos que passaram horas ouvindo as velhas (porém sempre renovadas e eternas) canções poderiam ter feito isso semana passada.

E acho que fizeram. Porque Belchior não seria coisa de se largar assim. Só porque sumiu um tanto de tempo, só por ter privado os fãs de novidades. Ah, não. Ele é coisa de se empunhar no peito em forma de camiseta. Coisa de se repetir com profundidade – sabe tudo dos sentimentos humanos. É coisa de se cultivar mesmo quando não se tem dinheiro no banco, parentes importantes e se tenha vindo do interior.

Foi isso que fiz. No ano em que nasci, ele lançava Alucinação. No ano em que nasci já havia nascido dez dos meus irmãos. Boa parte deles tinha Belchior como companheiro. Era por meio da voz cearense que falavam o que sentiam, cantavam o que sentiam, sem medo de demonstrar os sentimentos. Belchior sabia tudo deles. E eles sabiam tudo do cantor e compositor.

E foi ali, junto com meus irmãos e sua turma, ali embaixo do pé de umbu, embaixo do pé de juá, que ouvi, pela primeira vez, Na hora do almoço. A música faz parte de nossa família e de todas as nossas memórias afetivas. Na voz de Ricardo ainda nos toca mais. E sabemos as razões.

Só entendemos o que é paixão.

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