Os jornais inundavam a vida de Elvira com notícias que ela não queria ver. Ao contrário, gostaria de viver em desconhecimento perpétuo. Aí, estaria no mundo perfeito.
Mas não podia estar cega de todo. Como que tapava o rosto com a mão e deixava uma fresta por onde pudesse enxergar partes, por partes, com um filtro que ela mesma criara. Fechando ou abrindo a mão, em um ajuste apropriado a sua visão de mundo.
Algo a intrigava no noticiário. E era sua gana por sangue. Por violência. Por mostrar a fealdade das pessoas. Nas páginas ditas policiais era escancarado aquilo que ela queria negar: tudo era possível.
Homicídios, feminicídios, abuso sexual contra crianças e adolescentes, a frieza dos bandidos que matavam por nada, como se ao desferir o tiro ou a facada fizessem apenas um gesto de cortesia. Faziam isso desprovidos de expressão, de sentimentos, como se programados para tal. Parecia que os filmes de ficção científica já se incorporavam à vida real. Robôs.
A morte inundava os jornais como os jornais inundavam Elvira. Ela gostaria de ver neles apenas o caderno de Cultura ou uma sessão ainda não criada que falasse do bom e do belo. Gostaria que tivessem sons e estes fossem de trinar de pássaros, de galhos farfalhando, de risada de crianças, de gritos e sussurros de amor. Podia até haver silêncio. Mas que fosse cheio de luz e esperança.
Ela guardava um segredo. Embora com asco e desejando afastar-se, consumia aquelas notícias. Não conseguia simplesmente ignorá-las. A morte escrita... Por que exercia essa atração sobre ela? Era como se a preparasse para experimentar algo que gostaria que nunca acontecesse. Endurecia a carne. Enrijecia a alma. A familiarizava com o que não gostaria sequer de conhecer.
Foi no jornal mesmo que Elvira encontrou o antídoto. Escondido e camuflado, como se desejasse passar incólume e sem ser notado, um lugar destinado à morte e ao morrer pintado com cores de poesia e uma sutileza que bem podia ser instaurada no mundo de todas as notícias.
Lugar onde não havia selvageria. Injustiça. Perseguição. Inocentes massacrados. Culpados inocentados. Havia, sim, a gentileza que a morte também trazia.
Chamava-se Obituário. Olhou no dicionário. Diz-se de ou nota de falecimento, geralmente publicada em jornal, acompanhada da biografia do morto.
Ela ficou embevecida. Pode finalmente conhecer tanta gente especial, de hábitos notáveis, de personalidade distinta. Gente escolhida. Para distribuir graça e formosura.
Conhecia tarde. Mas valia a pena. Queria ter privado daquelas companhias. Jornalista apaixonado. O homem que amava terra, silêncio e o gamão. Uma forte e apaixonada professora de francês. Uma matriarca de fé e amor pelo Corinthians. Seu Jorge, um mineiro sorridente e orgulhoso. Arquiteto, aprendeu a tocar violão aos 80. Dentista e professor, fez de tudo pelos filhos.
Elvira sorriu.
Conhecia tarde. Mas se dedicaria a aprender as lições que deixavam nas páginas dos jornais que inundavam sua vida.