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VAI URUBUZAR PRA LÁ

Há algum tempo, da janela da sala, avistei dois urubus na árvore da frente.

Estavam lá trocando de galho, meio com síndrome de pardais, de sabiás ou algum outro pássaro mais amistoso, cantante e bem-vindo.

Não gostei nada daquela descoberta.

Passei uma tarde inteira de tocaia. Fantasiei que os bichos entrariam no apartamento e não tive criatividade suficiente para imaginar o desfecho da cena.

Chamaria os bombeiros? A polícia? Pularia? Sairia correndo para nunca mais voltar?

Não aceitei aquele comportamento, vindo de urubus.

Estavam lá, sonsos que só eles, como se nada estivesse acontecendo e fossem uma espécie tão agradável aos flagras como os beija-flores.

Pareciam um casal. Vez em quando se aproximavam um do outro. Ficavam lado a lado. Arrisco dizer que eventualmente trocavam carinho ou maiores intimidades – mas agora não me ocorre se vi algo que me indicasse isso ou se estou inventando essa parte.

Sei que nessa tarde não tive paz. E com um janelão daquele, com vista para uma frondosa barriguda, era muito injusta a ausência de paz vespertina.

Acho que naquele dia não fiz mais nada. Era um olho no gato e outro no peixe. No caso, dois olhos nos urubus e a tensão correndo nas veias. Vez por outra, os confundia ou perdia a localização de ambos, camuflados que estavam pela fartura de folhas e de acordo com a sombra que o sol ia trazendo.

Passei a apurar o olfato para saber se havia no ar algum cheiro de carniça que estivesse atraindo aqueles dois.

Fiz uma varredura nos cômodos e perscrutei a lata de lixo. Teria algum saco esquecido por lá confundindo o seu olfato?

Tentei adivinhar se havia algum defunto, até então ignorado, esperando por resgate em um daqueles blocos próximos – um idoso sem parentes na cidade, uma jovem solitária que sofrera uma queda fatal, um suicida silencioso.

Não obtive resposta convincente. E nem os tais resolveram me esclarecer a razão daquela presença.

Absorta nos questionamentos, terminei esquecendo de quem se tornava meus praticamente vizinhos.

Tão grandes e pouco sutis que a qualquer movimento a árvore inteira parecia se mexer. E as folhas todas farfalhavam. Sem falar no som das asas. Eles mesmos não falavam nada. Silêncio absoluto. Antipáticos. Indiferentes. Imponentes.

Não sei quanto tempo ficaram ou se nunca foram embora. O fato é que essa semana mesmo voltei a vê-los. E voltou a paranoia. Fechei a janela. Deixei só uma brechinha que, ao mesmo tempo em que não deixaria entrá-los, não permitia a passagem de uma sequer lufada de vento.

Acuada e com calor, quis fazer de conta que nada estava acontecendo e puxei conversa sobre urubus com minha filha.

O que será que eles estão fazendo aí? Não deve ter comida para eles nessas bandas.

E ela: Mãe, existem urubus que comem pequenos pássaros. Eles estão lá voando, o urubu vem e zapt (usou gestos e onomatopeias que deixaram a narrativa bonita que só). São abutres, um tipo de urubu.

Meu conhecimento sobre urubus e abutres não foi suficiente para que eu soubesse se ela tinha razão. Mas me aliviou saber que podiam se resolver por ali mesmo, na árvore, sem precisar entrar no apartamento.

Abri as janelas.

E acenei para eles.

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