O CRISTÃO TEM QUE ANDAR A PÉ
Se a gente se atém a observar o comportamento dos motoristas é surpreendido por cenas interessantes ou pitorescas.
Nem falo na maneira como dirigem – ou como deveriam dirigir.
Mas de coisas que acontecem no interior do veículo e que são atípicas para o espaço.
Não precisa reservar muito tempo para isso. Pode ser no intervalo do sinal vermelho. Ou enquanto esperamos um sinal verde para atravessar a rua.
Há flagras típicos dos horários em que acontecem.
De manhã bem cedo, vemos pessoas mastigando – um café da manhã apressado e improvisado que, por motivos diversos, não aconteceu no espaço doméstico, na padaria ou em uma cafeteria.
Há as mulheres que se maquiam com agilidade. Enquanto esperam passam base, pó, blush, lápis. Já o batom é largado no banco de passageiros, por ela ter sido buzinada pelo carro que vinha atrás.
Com sorte, ele não escorrega na próxima freada e vai parar, aberto, em cima do tapete cheio de areia e poeira.
Quando alguém não acelera o suficiente, não usa os alertas e escorrega de uma faixa a outra, já se sabe que o vilão é o celular. Se ele está no ouvido, vá lá, é mais comum. Ruim mesmo é imaginar como a pessoa dá conta de escrever mensagens de texto, enquanto devia estar completamente atenta ao fluxo.
Tem gente que troca de roupa ali no aperto. Puxa o freio de mão, solta o cinto e se despe ou se abaixa para tirar os sapatos. Geralmente saem as roupas de frio, as camadas da cebola, como se costuma dizer na época em que as temperaturas variam bruscamente durante o dia.
Tem que considere o som do carro um show público e saia por aí com altos decibéis para quem, inclusive, não tem interesse. Nesse caso, a música costuma ser de gosto duvidoso.
Nunca ouvi boa música em alturas impróprias.
A não ser quando eu mesma estou ao volante. Gosto, especialmente de manhã, de aumentar o volume, abrir os vidros e cantar junto. É um presente para os transeuntes. Não sei se a cantoria é aprovada. Deve ter quem a reprove, como eu não gosto da imposição de ouvir funk, eletrôncio, sertanejo e afins – mas é de coração.
Cena constrangedora, mas muito comum é dar de cara com uma limpeza de salão, ou seja, uma cutucada no nariz para a retirada de resíduos sólidos. Aí, depois a criatura junta os dedos, faz um movimento giratório e, num peteleco, tenta se livrar de sua meleca. Nem sempre é fácil. Às vezes a insistência é explícita. E o gesto se repete. Até que se a missão se cumpra.
Quando a empreitada parece vitoriosa, o seu protagonista se estica em direção ao espelho retrovisor e dá uma conferida, esticando o lábio superior e olhando profundamente narinas adentro.
Em Brasília, esse comportamento é mais recorrente em época de seca.
Como cantaria Gonzagão, “coisas que pra mó de ver, o cristão tem que andá a pé”.