Não sei quando descobri. Mas sei que não tenho muito poder de abstração. Muitas
coisas são impenetráveis para mim. Meu filtro do mundo são meus olhos. O que vejo é
que me faz capaz de sentir, de entender, de escrever.
Sou superficial. Ou seletiva. Ou não me importo. Poucas coisas compõem meu
mundo. E eu as respeito. Não sou boa interlocutora. Não tenho respostas prontas,
boas sacadas, jogos de palavras.
Sendo assim, nunca cheguei a compreender o conceito do brincar. Mas o trato como
se o conhecesse a fundo. Acredito nisso e, como dá, tento fazer disso mais do que
teoria, prática.
Um deles afirma que “através do brincar a meninada” aprende, experimenta o mundo,
possibilidades, relações sociais, elabora sua autonomia de ação, organiza emoções.
Tenho uma filha de seis anos. Sobre isso podia falar muito. E aos poucos falarei. Mas
quero me ater agora ao fato de priorizar a brincadeira no universo dela. E preparar o
terreno para que ela faça o mesmo. Restrinjo o acesso a eletrônicos, me incomodo
quando passa mais tempo do que acho necessário na televisão .
Mas ela é filha única. E eu sou mãe única. E moramos unicamente com nós mesmas.
E me resta, além dos papeis todos e de lidas diárias inimagináveis, ser criança, ser
sua amiga (com a mesma idade), ser sua companheira do brincar.
Sempre acho que uma criança real cumpriria melhor essa demanda. Mas nos nossos
modos cotidianos e contemporâneos, achar uma igual para que desfrutem dos seus
universos não é tarefa tão fácil.
Por vezes me canso da missão de voltar à infância. E me nego a ela. E lamento não
ser mais aquela, tão disponível a esse fim.
Mesmo assim, admiro a relação que tenho com a filhota no que tange ao que posso
aprender e até mesmo apreender no brincar com ela. E, nesse processo, ouvi-la.
Hoje, depois de duas jornadas de trabalho e mais tudo, quando esperei que ela
estivesse cansada o bastante para cumprir seu ritual noturno sem grandes
intercorrências, ela parecia com a energia de anteontem. E eu, surpreendentemente,
com o mesmo grau de paciência e de entrega.
Brincamos. Por horas a fio.
E então tive a clareza do que quer dizer o conceito de brincar.
Minha filha repetiu nosso ritual, nossa rotina, desde a hora em que o despertador toca,
às 6h, até a hora em que dorme, normalmente por volta das 21h.
A diferença, ela estava nos postos de liderança. Era a mãe, era a professora. Estava
no comando. Eu, a filha, a aluna, a subordinada.
Ela fez o que eu faço. Comida. Gestos. Palavras. Hábitos. Se arrumou. Se maquiou.
Me deixou nos lugares em que a deixo, a começar pela escola.
E assim pude perceber como ela se sente em todas essas situações. O que a marca.
O que pensa e sente. Além de ter a verbalização desses sentimentos, pude eu mesma
vivênciá-los. Além de me ver refletida. E sentir a força que tem cada coisa com jeito de
banal do dia a dia.
Falei inglês, alemão, brinquei de Seu Rei Mandou ou Simon Says. Fiz tabuada.
Escrevi as primeiras letras em folhas em que eu mesma decorava com bordas para
recebê-las e depois desenhei coisas que começassem com elas.
Tomei café, tomei banho, escovei os dentes. Troquei de roupa. Preparei mochila. Ouvi
reprimendas. E procurei imitá-la em comportamentos mais recorrentes, como acordar
chorando por ter que fazê-lo.
Ouvi história. Contei história. Pus pijama. Fui posta para dormir. E foi precisamente
nessa hora em que fui tomada por um susto. E uma sensação estranha. De ruptura.
Depois de todo um aconchego para preparar meu ritual do sono, minha mãe, na
verdade, minha filha, deu boa noite, beijo, rezou e se despediu.
A porta rangeu. Ela saiu. O quarto escureceu. O coração gelou.
E eu paralisei. Então é dessa partida súbita que ela reclama, quando eu mesma saio
antes que adormeça. O meu objetivo é render um pouco mais. Se eu fico, adormeço
junto.
Mas quando aconteceu comigo, doeu.
Então, isso que é se colocar no lugar do outro. Isso que é pesquisa-ação. Isso que é
empatia. Para todas as afirmações uma interrogação no final.
Não sei o que é não. Mas agradeço a chance de ter cumprido a décima jornada do dia
de forma tão intensa. E, assim, brincando.