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TÁ LÁ O CORPO ESTENDIDO NO CHÃO

Foi ver a cena e lembrar da música ‘De frente pro crime’, de João Bosco.

Fiquei meio inconformada. Era tão cedo. Eram quase os meus primeiros passos e já podia apontar: tá lá o corpo estendido no chão.

Não gostei do confronto com a vida real e pensei que, com esse mundo do jeito que vai, eu não devia ser a única naquela segunda-feira a encarar um corpo inerte.

De tão frios que estamos ficando, as cenas se tornam invisíveis. Aquela seria mais uma coisa a não ser vista. Mas eu a vi. Não cansava de matutar que, um segundo a mais de cabeça ereta, olhando apenas para frente, eu teria passado sem ver nada.

Quis o destino que num titubear eu avistasse aquele montinho sem vida.

Lembrei dos relatos de mamãe sobre os velórios de pessoas conhecidas. Ela sempre faz uma narrativa muito detalhada e respeitosa sobre esses momentos. Há beleza e mistério na sua descrição. É como se aquela expressão revelada no defunto pudesse trazê-lo de volta ou justificar a loucura que fora sua partida.

Também pode denotar que já está do outro lado. Bem. Melhor que nós. No lugar em que todos nos encontraremos.

“Estava tão bonito (a). Uma expressão de paz. Tão corado (a). Parecia até que estava rindo”...

Ela diz com entonação na voz e nos transporta para estar lado a lado com o falecid(o), mesmo quando recebemos notícias suas via telefone.

Pois bem. Quis olhar para trás e foi quando vi reproduzida ali a narrativa de mamãe.

Em poucos segundos tive a sensação que aquele ser descansava em paz.

Enquanto o corpo estava largado, barriga para cima, a cabeça se mantinha de lado e o bico apontava para o alto. Altivo. Fui capaz de ver ali uma expressão de riso. De missão cumprida.

Olhei para o lado e encarei meu próprio reflexo na enorme parede de vidro.

Será que aquele pequenino tivera o mesmo destino de tantos dos seus irmãos? Enganado pela arquitetura moderna, trombou consigo e caiu morto, atingido na cabeça?

Baleeira não podia ser. Estamos em plena selva de vidro e concreto brasiliense. Não creio que uma criança arteira ou um adulto saudoso de seus tempos na roça tenha atingido a ave com sua arma de pau, borracha e pedra.

Eu também não tinha visto sangue ou ferimento aparente.

Morrera de velhice?

Batera as botas, digo, as asas, assim de morte súbita?

A quem sobraria recolher seus restos?

Era capaz até de fazerem vista grossa e deixá-lo ali, até que começasse a exalar o cheiro desagradável dos corpos pútridos.

Quem determinaria sua causa mortis?

Não. Essa minha inquietação não teria resposta.

Seria recolhido por uma pá e deixado na primeira lixeira que aparecesse pela frente de quem o resgatasse? Ou teria destino mais digno?

O que acontece com os corpos dos pombos encontrados nas calçadas?

Quis o destino que num titubear eu avistasse aquele montinho sem vida.

Em sua lápide, escreveria, inspirada em Sabino: Aqui jaz um pombo.

E só.

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